quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Espanha: Santiago de Compostela e litoral da Galícia

A religiosa Santiago de Compostela e o litoral da Galícia 

Por Regina Cazzamatta (texto publicado originalmente na Revista Viaje Mais! Novembro 2016)

Dizem na Espanha que Deus, após terminar a criação do mundo, apoiou as mãos abertas, para descansar, sobre o norte do país. Assim teria formado, com seus cinco dedos, as cinco “rías” da Galícia, os braços do mar que avançam território adentro, rasgando as montanhas. A lenda tem uma explicação: a Galícia vive cercada de fé e misticismo desde os tempos mais remotos. E é assim até hoje. Sua capital, Santiago de Compostela, clímax do célebre Caminho de Santiago, é o terceiro ponto de peregrinação cristã mais importante do mundo, depois de Jerusalém e do Vaticano.
Essa região do norte da Espanha, às portas do Atlântico, é uma terra bucólica, de morros suaves e cidades pequenas (a capital tem apenas 100 mil habitantes), onde brota uma cultura própria, que não tem nada a ver com os estereótipos espanhóis do flamenco e de touradas. Começa pelo idioma distinto, o galego, e segue pela religiosidade. O turismo é um traço importante, mas não se resume aos andarilhos peregrinos carregados de fé e devoção a San Tiago. Turistas bem mais céticos também vão à galícia, em busca do prazer de caminhar em belas cidades históricas, como a própria Compostela; dos divinos pratos de frutos do mar; e dos passeios ao litoral de águas cristalinas, de charmosos vilarejos de pescadores e grandes belezas naturais. 
litoral das ilhas cíes 
Sendo assim, não será preciso caminhar centenas de quilômetros para chegar a Santiago de Compostela, ainda que seja impossível não se contagiar com a emoção de se deparar com a catedral de Santiago, a alma da urbe. O templo é colossal, sempre cheio de fiéis de todas as partes do mundo, que fazem fila na entrada para tocar a coluna do Pótico da Glória e repetir as mesmas palavras: “Senhor, eu creio!”. Faz parte do ritual peregrino. Os devotos também se juntam na cripta para ver o baú de prata com os supostos restos mortais do apóstolo Tiago. 
Santiago clicada do topo da catedral
A história católica dá conta de que Tiago veio bater na Galícia em 38 d.C. em sua missão evangelizadora. Seis anos depois, já de volta a Jerusalém, foi assassinado. Dois discípulos recolheram o corpo de Tiago e colocaram-no em uma urna, que foi levada de volta à Espanha para ser enterrada. Oito séculos se passaram até que o santíssimo esqueleto fosse enfim encontrado por um eremita galega chamado Pelayo.
Peregrinos chegando a Santiago de Compostela
É claro que Pelayo não tropeçou distraidamente na tumba do apóstolo. O episódio ganhou tons bem mais dramáticos. No ano de 813, o eremita viu uma chuva de estrelas cair sobre um campo e, guiado por essas luzes, foi até o local e desenterrou a ossada. Obviamente, há dúvidas se os restos mortais na cripta da igreja são mesmo de Tiago. Mas isso é uma questão de fé, e fé, como se sabe, é o que não falta em Santiago de Compostela.
Do lado de fora da catedral, o burburinho rola com intensidade nas quatro praças que a circundam: Quintana, Imaculada, Prataria e Obradoiro. Essa última ganha mais vida com a chegada de peregrinos exaustos após longas e árduas jornadas. A atmosfera de vitória e trocas de energias positivas dominam o ambiente, com cantorias e lágrimas. Ao lado da praça, está o antiquíssimo Hotel dos Reis Católicos. Recheado de pátios e fontes memoráveis, o abrigo foi criado em 1499 como um hospital para socorrer peregrinos. Paradoxalmente, transformou-se hoje em uma hospedaria chiquezinha. 
Interior do Hotel dos Reis Católicos 
Ruas de Santiago durante a madrugada
No centro histórico de Compostela, por suas ruas estreitas, proibidas para carros, é bem fácil encontrar as famosas taperias espanholas. A capital galega abriga cerca de 1.100 restaurantes e bares, um para cada 100 habitantes. A especialidade quase sempre é a “mariscada”, uma orgia de frutos do mar. O pecado é não provar. Navalhas, percebes, berberechos... são alguns dos estranhos mariscos locais que são degustados com muito azeite e uma taça de vinho albariño. Ou, se melhor apetecer, uma cerva local, a estrela da Galícia. Nenhum frutos do mar, porém, é tão tradicional quanto as vieiras, a macia carne da concha que virou o singelo ícone da cidade, e está pendurada nas mochilas dos peregrinos. Em outros países, como na Alemanha, a vieira é conhecida como “concha de Santiago”. O problema é o preço salgadinho (uma unidade pode custar até €12). 
Vieriras ou conchas de Santiago
 O mercado de Abastos em Santiago é uma boa opção para degustar todas essas delícias e outras cositas más, como queijo tetilla (tetinha, em português), batizado assim por conta do seu formato de seio. Como 40% do leito produzido na Espanha provém da Galícia, dá para imaginar a qualidade dos queijos da região. Ou então o “pulpo á feira”, um polvo cozido que derrete na boca, temperado com páprica. E, na hora de adoçar a vida, nada e mais clássica do que a Torta Santiago – de amêndoas e salpicada com açúcar de confeiteiro –, acompanhada dos licores locais. 
Queijos tetillas vendidos no mercado de Abastos


A Costa Galega

Marco zero do caminho de Santiago, na costa Finisterre
O Caminho de Santiago não acaba em Compostela, segue até Finisterre, no ponto mais ocidental da costa  espanhola, a 90 km de distância. Os peregrinos encaram três dias para concluir esse trecho final da caminhada. Mas dá para ir até lá em pouco mais de uma hora de caro, ou mesmo em passeios bate-e-volta que saem da capital galega e levam a diversos pontos do recortado litoral que vai de Carnota a La Coruña. Finisterre é o pedaço mais famoso, onde está a rocha do marco zero do Caminho de Santiago. Próximo a ele fica o farol do Cabo Finisterre, de 1853. Nesse ponto, no alto da falésia, peregrinos que concluíram a jornada queimam suas roupas e amarram seus calçados surrados no penhasco. É um ato para simbolizar renivação e renascimento. 
Botas deixadas por peregrinos ao fim do percurso
Entre algumas excursões ao Cabo Finisterre estão paradas em pontos interessantes, como a ponte Maceira, no pequeno município homônimo. Toda de pedra, com arcos em estilo romano, a ponte foi construída na Idade Média para ajudar a travessia dos peregrinos. Outra belezura do trajeto é a cachoeira do Rio Ezaro, que deságua no mar em grande estilo com uma encantadora queda d´água. 
Desague do Rio Ezaro
Os passeios que partem de Santiago de Compostela também levam a La Coruña, onde o principal ímã turístico é a Torre de Hércules, o farol mais antigo em funcionamento do mundo, erguido há dois mil anos pelos romanos. Até hoje auxilia os navegantes que enfrentam o mar bravio e os nevoeiros comuns naquelas latitudes atlânticas. 
Torre de Hercules em la Coruña
Na pequena cidade de Muxía, o santuário da Virgem da Barca, uma fascinante igreja à beira-mar, merece estar no seu roteiro. Segundo a fábula, Santiago rezava no local, quando viu chegar um barco. Nele vinha Nossa Senhora, que o consolou e o motivou a continuar seu trabalho de evangelização. Muitos crentes vão até lá e passam por baixo de uma enorme pedra curvada, que simboliza o barco de Nossa Senhora, com o intuito de curar dor nas costas. 
Santuário da Virgem da Barca, em Muxía
De todos os vilarejos costeiros, o mais charmoso é Combarro, uma vilinha de pescadores, com uma ruela estreitinha à beira-mar, abarrotada de restaurantes e lojinhas com produtos locais. Barraquinhas de licores, panelas de barro, vinhos albariños e bruxinhas (curiosamente chamadas de “meigas”, para espantar os maus espíritos) são vendidos ali na minúscula orla. É daqui também que saem animadíssimas excursões de catamarãs (www.crucerospelegrinn.com) para uma voltinha na ilha do Tambo. O auge dos passeios é a degustação de mexilhões ao vapor com uma garrafa de vinho branco geladinha. Música, petisquinhos frescos, bebida trincando e a tripulação toda dançando. 
Orla de Combarros, litoral da Galícia 

Combarros from Regina Cazzamatta on Vimeo.

A grande joia da costa galega são as ilhas Cíes, um pequeno arquipélago transformado em parque nacional marítimo, a 14 km da costa da cidade de Vigo, que por sua vez está a 100 km de Santiago de Compostela. São apenas três ilhotas, pequenas em tamanho mas grandes em beleza. Duas delas são interligada por uma longa faixa de areia, a Paria de Rodas, que o The Guardian classificou, em 2007, como “a melhor do mundo”. É de fato muito bonita, mas convenhamos, os ingleses não entendem muito de praia. Além dela, são mais oito arquipélago, todas com areia branca e mar cristalino que poderiam mesmo compor um pequeno Jardim do Éden se as águas não fossem geladérrimas!
Praias das ilhas Cíes 
Por ser uma reserva ambiental, não há casas nem hotéis nas ilhas. Os passeios são geralmente para passar o dia e voltar. Desde Vigo, partem ferries diários para as Ilhas Cíes. Mas a visitação nas ilhas é limitada a duas mil pessoas ao dia. Por isso, é preciso fazer a compra antecipada dos bilhetes (no site www.mardeons.es) e retirá-los antes de embarcar. Todos esses cuidados servem para manter as praias e os morros das ilhas preservados. 

BarcoCies from Regina Cazzamatta on Vimeo.
Quem curte trekkings tem alguns roteiros à disposição. Uma trilha bem popular, com duração de 2,5 horas, é a que leva ao Monte farol, na ilha de O Faro. A caminhada é puxada, mas a paisagem compensa o esforço. Se você for até lá e fizer esse caminho, talvez não sinta nenhuma epifania ou elevação espiritual tal como um peregrino, mas voltará com uma certeza: a de ter encontrado prazeres bem mundanos e palpáveis para explorar nessa bela região do norte da Espanha!




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